Pandemia, Isolamento e Direito Penal A Força da Palavra da Mulher na Violência Doméstica

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Pandemia, Isolamento e Direito Penal A Força da Palavra da Mulher na Violência Doméstica

Na crise que vive a sociedade pelo isolamento forçado na pandemia virótica, um setor que preocupa amplamente os operadores do direito penal é a seara das relações domésticas. Especialmente, cita-se a convivência diuturna de homens e mulheres confinados em suas residências.
A discussão acerca das desigualdades entre homens e mulheres é antiga, dos gregos antigos até bem pouco tempo atrás, acreditava-se que a mulher era um ser inferior.

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, visando a igualdade de gêneros, criou políticas para amparar as mulheres vítimas de violência doméstica, cometida por seus companheiros. Tal lei é um marco na história, haja vista seu caráter revolucionário de proteção diante da quantidade inegável de mulheres que sofrem esse tipo de violência.

Assim, não se discute aqui a importância da referida lei, o que se discute aqui são os excessos cometidos pelas próprias mulheres que, muitas vezes, utilizam a Lei Maria da Penha como aliada para obter vantagens processuais, negociais e até mesmo com o intuito de vingança. Na maioria dos casos, o objetivo é punir o falso agressor pelo fim do relacionamento, prejudicá-lo em disputas pela guarda dos filhos ou pensão, e obter vantagens em partilhas de bens. Vale salientar que, para isto, é utilizado um amplo aparato judiciário, retirando esforços dos casos em que realmente há a violência doméstica.

Diante da especificidade da situação e da posição vulnerável da mulher no contexto da violência doméstica, a doutrina e a jurisprudência encontram-se quase uniforme no sentido de que a palavra da vítima é suficiente para a condenação do acusado, mormente nos casos de crimes cometidos na clandestinidade, onde não há testemunhas ou qualquer outra prova que corrobore a palavra da vítima. Assim, a simples alegação da suposta vítima é suficiente, num primeiro momento, para que haja a concessão de medidas protetivas, que podem variar desde a proibição de aproximação até o afastamento do lar, ou a prisão. Nesse momento, não há presunção de inocência do suposto agressor.

É o caso do crime de ameaça, no qual a mulher relata, por exemplo, que o companheiro teria proferido ameaça de morte. Ainda que tenha sido proferida entre quatro paredes, sem a presença de qualquer testemunha, é muito provável, para não dizer certo, que o suposto agressor seja condenado, tamanha a relevância da palavra da vítima no contexto da violência doméstica.

É tamanha sua força que, a partir dali os homens são tachados como agressores, antes mesmo de se defender. É evidente a segregação do homem quando acusado em um processo criminal, contudo, quando processado pela prática de violência doméstica, a marginalização é acentuada, pois, com todos os mecanismos criados pela Lei Maria da Penha, o acusado se torna culpado antes mesmo da condenação, aos olhos da sociedade.

Observa-se que grande maioria das denúncias têm como objeto os crimes de ameaça e injúria, e costumam ocorrer dentro do ambiente doméstico, na intimidade do casal, motivo pelo qual não deixam vestígios ou testemunhas, bastando a palavra da vítima como prova. Ressalta-se: apenas a palavra da mulher tem peso para a instauração de inquérito policial e deferimento das medidas protetivas de urgência. Nas palavras de Pedro Henrique Demercian: “A vítima não presta o compromisso de dizer a verdade; portanto, não pratica crime de falso testemunho, devendo ser suas declarações apreciadas com a devida reserva, já que a narrativa poderá trazer certa carga de tendenciosidade, muitas vezes provocada por interesses extrapenais, tal como a pretensão de ver-se indenizada civilmente pela conduta ofensiva do acusado.”

Ainda, há de se considerar o mencionado por Enrico Altavilla: “Vítima é pessoa diretamente envolvida pela prática do crime (…) coberta por emoções perturbadoras do seu processo psíquico, levando-a à ira, ao medo, à mentira, ao erro, às ilusões de percepção, ao desejo de vingança, à esperança de obter vantagens econômicas.”

Considerando que, na violência doméstica, o agressor é alguém próximo à vítima, normalmente o marido ou namorado, o critério psicológico da vítima provavelmente estará muito mais deturpado. Fato interessante, contado na passagem bíblica de Gêneses, no Velho Testamento da Bíblia Sagrada, é a chamada “síndrome da mulher de Potifar.”

A história menciona que a mulher de Potifar, capitão da guarda real do Egito, desejava libidinosamente um dos súditos de seu marido, mas, o súdito, que era fiel a seu Senhor, negou o envolvimento com sua mulher. Sentindo-se menosprezada, a mulher disse ao marido que seu súdito havia tentado estuprá-la, levando ao encarceramento do mesmo.

A síndrome da Mulher de Potifar é conhecida penalmente como “a figura criminológica da mulher que, sendo rejeitada, imputa falsamente – contra quem a rejeitou – conduta criminosa, relacionada à dignidade sexual” , sendo mais frequente do que se possa imaginar.

Por óbvio que a palavra da vítima não pode ser desprezada, mas não deve se sobrepor às provas documentais ou testemunhais, não devendo ser utilizada como única prova para efetivar um decreto condenatório. Guilherme Nucci , afirma que a “palavra da vítima não pode ser comparada à palavra da testemunha”. As testemunhas prestam compromisso de dizer a verdade, já as vítimas, não são obrigadas a falar a verdade.

No processo penal de um modo geral, o magistrado deve se ater às provas produzidas no decorrer da instrução probatória para proferimento de sentença. Segundo Guilherme Nucci , “a verdade processual emerge durante a lide, podendo corresponder à realidade ou não, embora seja com base nela que o magistrado deve proferir sua decisão.”

Em relação à valoração das provas produzidas durante o processo, deve-se ter sempre em mente os princípios constitucionais, ou constitucionais processuais penais. A Lei Maria da Penha é uma norma processual penal infraconstitucional, não sendo exceção à regra no que toca à observância dos princípios constitucionais, devendo, do mesmo modo que outras normas da mesma estatura, respeitar a mesma sistemática acusatória.

Assim, a condenação baseada na simples palavra da vítima seria uma inversão do ônus da prova, prejudicial à defesa e, consequentemente, uma contradição à garantia constitucional prevista no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal. Ademais, no sistema processual penal brasileiro, vige o princípio do in dubio pro reo, segundo o qual a dúvida sempre deve ser empregada em favor do acusado. Assim, ainda que a palavra da vítima tenha especial relevância, mormente em casos de agressões ocorridas no ambiente familiar, é necessário que seja corroborada por outros elementos de prova, sob pena de se fazer valer o referido princípio.

Leciona Aury Lopes Jr. : “Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução da incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é imperativa. Isso porque, ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua presunção, até prova em contrário, essa prova contrária deve aportá-la quem nega sua existência, ao formular a acusação. Trata-se de estrita observância ao nulla accusatio sine probatione.”

Não se pode esquecer que a palavra da ofendida sempre conterá uma carga emocional, sendo certo que sua fala deva ser analisada com cautela, contudo, pode e deve ser considerada prova de suma importância para uma condenação no âmbito da violência doméstica, o que não significa que a condenação pode ser baseada somente na palavra da vítima. O que não se pode admitir é que alguém possa ser condenado diante de um juízo de incerteza e fundada dúvida.

Percebe-se assim, o estrago que a Lei Maria da Penha pode fazer nas mãos de pessoas movidas por ódio, interesse e/ou vingança, fazendo do suposto agressor a verdadeira vítima, já que, ainda que não seja condenado ao final, terá que responder ao processo, sujeitando-se a uma condição humilhante, angustiante e desnecessária pelo período em que estiver sendo processado.

Aos juízes e autoridades persecutórias competirão a análise fria das situações que se apresentam, mais dificultadas pelas especializações de delegacias e varas, em que pejorativamente o homem já adentra como agressor. A análise das circunstâncias e entornos do fato, bem como as personalidades de ‘vítima’ e agressor tornam-se essenciais ao proferimento de decisões justas, especialmente naquelas situações de prova única consubstanciada no depoimento singular da vítima.

Por fim, vale mencionar que dar causa à instauração de investigação policial ou processo judicial, contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, configura crime de denunciação caluniosa. Quem denuncia injustamente, responde ainda, civilmente, por danos morais e patrimoniais causados ao ofendido.



Valéria Kassai

Advogada criminalista do escritório Décio Freire Advogados, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra, Portugal e pela FGV Law.


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